Não me chame de guerreira: o peso do estereótipo para mulheres negras
- Alessandra Martins

- 11 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 19 de ago.

Guerreiras?
A normalização do sofrimento dos corpos negros também é uma forma de violência. É uma vertente racista que enxerga a mulher e o homem negro como pessoas fortes, que aguentam tudo e estão sempre prontas para o combate.
Às vezes, nos sentimos para baixo, frágeis, sem forças e sim, podemos.
Ninguém é forte o tempo todo. Eu tinha uma amiga que se recusava a ser chamada de "guerreira". — Guerreira por quê? Eu não escolhi a batalha, ela apenas foi predeterminada para mim — dizia ela. — Preciso ser forte e estar lutando o tempo todo?! Não, não quero. Quero escolher ser frágil, delicada e chorar de vez em quando — continuava ela.
Eu ouvia, refletia e entendia muito bem o que ela dizia. Porque, além de viver, eu via como éramos tratadas diariamente. É uma espécie de desumanização inconsciente. No passado não muito distante, mulheres e homens negros eram vistos como os que aguentavam o trabalho duro, como corpos sem alma, apenas objetos. E hoje, isso muitas vezes vem disfarçado de elogio.
Assim que cheguei aos Estados Unidos, morei em Nova Iorque, na casa de um brasileiro, num bairro chamado Astoria — com grande concentração de brasileiros. Esse sujeito tinha muitas amigas brasileiras, todas consideradas "brancas" no Brasil. Lembro que, uma vez, ele precisava mover um móvel pesado na casa dele, e uma das mulheres me disse: — Pretinha, ajuda ele a levantar aquele móvel ali. Eu não posso, pois arranquei um dente quando tinha sete anos e não posso pegar peso. E o sujeito aceitou de boa. Me pediu para ajudar. Ou seja, para uma mulher branca, está tudo bem não ter força para puxar um móvel, mas para uma mulher negra, não há desculpa. Aguenta qualquer parada. Outro exemplo: minha avó, uma mulher negra retinta, que fez 90 anos esse ano, mora no mesmo bairro há 70 anos, em Duque de Caxias. Teve 15 filhos, era sempre chamada pelas vizinhas brancas para trocar botijão, lavar roupas, puxar móveis pesados, porque as dondocas diziam não saber fazer e minha avó sim. Como questionou Sojourner Truth em seu famoso discurso, em 1851, em Ohio: "E eu não sou uma mulher?"
Não, Sojourner. Para o racismo estrutural, institucional, religioso, cultural e epistemológico, historicamente, nós nem humanas somos.
Eu entendia aquela amiga completamente, porque mesmo que nós, mulheres negras, sejamos plurais, os atravessamentos tornam nossas experiências quase que iguais. Nós duas somos negras, porém, eu sou uma negra com menos melanina. Não sou retinta. Ela é retinta. E o peso é bem maior quando não se tem o mimetismo do colorismo. Como a borboleta se camufla entre folhas e flores, uma pessoa negra não retinta vive algo parecido com sua passibilidade social, mas ainda assim é negra. E uma hora ou outra será lembrada disso, caso esqueça. Uma mulher negra, mesmo que não retinta, vive o racismo frequente, seja na objetificação, hiperssexualização ou preterimento.
Eu, mesmo não sendo retinta, ouço com frequência: — Você é muito guerreira. Parabéns, guerreira. Você merece, guerreira!
Por quê guerreira? Porque nós, mulheres negras, temos essa cobrança frequente de estarmos sempre lá, fortes, prontas para as adversidades que somos obrigadas a viver.
Há quem diga que tudo isso é vitimismo. Contrapondo esse argumento raso e sem fundamento, afirmo: não, não é. Existe uma frase que diz: "escolha suas batalhas", mas será mesmo que nós, mulheres negras, hoje em dia, podemos escolher?
Muito menos o homem negro. Esse, coitado, nem de guerreiro é chamado. É morto antes.
Antes de sermos vistas como mulheres, queremos ser vistas como humanas. Queremos poder ser sensíveis, até princesas.
Por que, até pouco tempo atrás, não se ouvia falar de princesas negras? Por que quase não se via bonecas negras? Porque, primeiramente, houve um plano sistêmico racista para apagar nossa história e nos destruir.
Desde os primórdios, antes do eurocentrismo, existiam princesas e rainhas negras, mas por muito tempo essa história não nos foi contada. Fomos aculturadas, e moldadas para sermos de ferro. As resistentes. As que suportam o sol quente, o açoite, o chão frio, a senzala. Tudo!
Depois, veio a falsa abolição. E a negação dos direitos. Sem acesso à educação, moradia, trabalho digno.
Basta analisarmos a história veremos como a mulher negra era tratada. E o pior, ainda é. Está lá, nas estatísticas, o abismo de privilégios é visível.
Portanto, não escolhemos a batalha. A batalha nos escolhe. E não podemos dizer não.
Então, não vou dizer para você ser forte. Seja fraca, se quiser. Você tem todo o direito.
Entretanto, nenhuma batalha é em vão.
A palavra "batalha" vem do latim battuere, que quer dizer bater; no latim medieval, battualia significa combate.
Afinal, bater em quem? A sensação, muitas vezes, é de que só se apanha.
Nos perguntamos: o que fazer? Que luta é essa, onde aparento só perder?
Não queremos mais ser chamadas de guerreiras, pois sabemos que é um nome bonito para a banalização da dor. Queremos refrigério, descanso, bonança.
Porém, desistir de nós mesmas jamais. Porque sempre haverá alguém que acredita, que se inspira em nós. Mesmo sem querer levantar bandeira de luta, nossa vida é uma vitória. Então, mesmo que você acorde se sentindo um trapo, não pare.
Podemos não saber ao certo onde vamos chegar, mas sabemos de onde viemos: bem lá atrás, com nossos ancestrais, que além de guerreiros e guerreiras, também eram reis e rainhas.
Essa força é ancestral, não é só física, mas da energia que nos guia, do axé que nos fortalece.
Essa sede de mudança está aqui, dentro de mim e de você, mulher preta.
Acalmemos o coração. Podemos não ver o movimento, mas ele acontece, sim.
Mesmo que lentamente, tudo muda. Diariamente.
Mesmo que hoje não esteja tão bom - normal. A vida é feita de altos e baixos.
Não podemos desistir, porque venceremos, mas não nos chame de guerreiras.
Por Alessandra Martins
Foto ilustrativa




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