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Quando a infância não é lugar de saudade

Atualizado: 31 de jul.

Hoje acordei nostálgica… Coloquei uma playlist para tocar e vieram muitas memórias. Ao som de Azul da Cor do Mar, canção que amo e que, coincidentemente, meu pai já disse ser “a minha música”- voltei, em pensamento, algumas décadas atrás. Lembrei de muita coisa que já vivi e fiz uma comparação entre como minha vida foi e como é hoje, posso até dizer que minha vida mudou da água para o vinho.


Quando olho para o passado, lembro dos muitos caminhos que percorri, das portas por onde entrei e saí, dos mundos que transitei e das realidades que vivi. Eu até tinha um blog chamado Caviar e Ovo-frito, pois me sentia entre realidades distintas: o caviar representava um mundo no qual transitei e entrei; o ovo-frito, o lugar de onde eu morava e saí para recomeçar.

Tive pouco incentivo, poucos recursos, poucas oportunidades ,  mas, de uma forma que não sei explicar, busquei coragem, ladrilhei minhas ruas com pedrinhas de brilhante e segui.


Para não usar o termo “louca”, reforçando o capacitismo, posso dizer que é uma “situação bastante intrigante”.

Talvez você, que está lendo, não me conheça o suficiente. Possivelmente a grande maioria não conhece, pois quem realmente sabe da minha história são os que me viram andar de canela ruça, pés descalços, camisa velha de candidato político, chorando ou cabisbaixa em algum momento da infância ou adolescência. E, geralmente, essas pessoas são da família. Outros conheceram uma parte do processo: nas lutas, tentativas, experimentos ou nas labutas frequentes em que me joguei.


Todo mundo tem uma história para contar sobre si. Muitas pessoas sentem saudades do passado  - legal! Já eu, quando observo os capítulos da minha infância e adolescência, vejo que não foram nada floridos. Muito pelo contrário: eu me sentia como a haste de uma flor sem pétalas, no deserto. Por isso, não tenho nenhuma saudade ,  dou é graças a Deus por não viver mais lá.

Outro dia, conversando com meus pais, comentei que já houve períodos em que tive vontade de dormir e não acordar mais. Além das tribulações com o bullying na igreja e na escola, dentro de casa eu me sentia péssima. Quando disse isso, meu pai demonstrou imensa surpresa — afirmou que não sabia que eu me sentia daquela forma. Ratificou, mais uma vez, o quanto nossa relação (e isso inclui minha mãe) era quebrada.


Muitos pais desconhecem — ou não procuram conhecer  - como seus filhos se sentem, pois estão ocupados com outras coisas que consideram mais importantes. E, infelizmente, muitas vezes isso só é percebido quando vidas são perdidas.


Confesso que já me achei injusta por lamentar meu passado. Apesar de não ter sido fácil para mim, muitas crianças crescem sem pai, mãe ou um “lar” para chamar de seu. Porém, contrapondo esse pensamento, entendo que não há como medir o que o outro sente. Dores são individuais, e só sabe como dói quem vivencia determinada dor.


bell hooks diz que não podemos normalizar o abuso, e que muitos de nós precisamos nos apegar a uma ideia de amor que torne o abuso aceitável ,  ou que, ao menos, nos faça acreditar que, independente do que aconteceu, não foi tão ruim assim.


Concordo com bell hooks, pois o fato de afirmarmos que existia amor em relações onde houve negligência na infância pode, sim, reforçar a normalização da violência física e/ou psicológica. Por isso, muitos de nós crescemos como adultos que toleram o desrespeito e relacionamentos abusivos, pois no passado aconteceu com quem deveria nos amar.


Hoje, como mulher adulta e mãe, reconheço um dilema: mesmo sem ter me sentido amada, acredito que, à sua maneira, meus pais tentaram amar. Talvez eu pense assim porque os perdoei. No entanto, esse perdão não anula a falta de discernimento deles em momentos importantes da minha infância e adolescência, pois eu não senti esse amor, demonstrar afeto parecia um tabu. Na verdade, eu achava até que minha mãe não gostava de mim. Minha percepção só começou a mudar há dez anos e, ainda assim, eu já era adulta.


Cada pessoa tem uma maneira de lidar com os traumas da infância. Algumas resolvem se afastar e não manter, ou manter o mínimo de contato possível, e devemos respeitar isso. Outras, como eu, tentam frequentemente ressignificar essas vivências, pois acreditam que, assim, conseguirão viver melhor. Porém, essas memórias são como fantasmas que sempre reaparecem para assombrar o presente.


Ao observar meus pais ao meu lado, hoje idosos, percebo que suas infâncias também foram sabotadas e negligenciadas. Passeiam e experimentam coisas como se fossem duas crianças no parque. Consigo ver que talvez não souberam demonstrar amor porque nunca aprenderam como. Eles não tiveram, naquela época, a oportunidade de fazer diferente. Coube a mim quebrar esse ciclo de dor e, agora, na criação da minha filha, será ,  e tem sido  diferente, pois me esforço ao máximo para demonstrar o quanto a amo. Meus pais, ela e eu  -  um elo infinito de amor.


Assim, chego à conclusão de que nunca é tarde demais para resgatar a criança-sol que existe dentro de nós. O amor constrói novas narrativas e muitas perspectivas. E mais: nos ensina a ser mais compreensivos e sábios.


Um viva ao hoje , e à beleza da vida.



 Fotografia de William de Ukoh — diptych
 Fotografia de William de Ukoh — diptych



Foto ilustrativa

Texto por Alessandra Martins

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Alessandra Martins

©2024 Por Alessandra Martins.

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